sexta-feira, 3 de abril de 2009

Madrugadas insalubres

Pela janela entre aberta já não entrava mas vento. Isto contribuía para lhe deixar mais sufocado dos que se sentia. Em sua escrivaninha papéis espalhados se misturavam com cinzas de cigarro. A noite estava calma, salvo latidos de um cão ao longe. Sentou, apertou os olhos como quem revira a memória atrás de lembranças perdidas e cerrou os lábios. Acendeu um cigarro, suspirou e por um momento se lembrou de seu primeiro cigarro. O dividiu com um amigo atrás da escola na hora do intervalo. Mas isso fazia muito tempo e muitos outros amigos vieram e sumiram como a fumaça de tantos que fumou. O latido do cão o fez voltar de seu passado. Suas mãos suavam e isso o deixava incomodado. Se levantou, foi ao banheiro e abriu a torneira mas ficou só olhando a água cair. Se olhou no espelho. Já não reconhecia mas quem estava a sua frente. As olheiras já proeminentes, os lábios ressecados, a barba por fazer e o cabelo mau cuidado contribuíam para isso. Sentou novamente e ensaiou escrever, mas a impaciência não deixou. Respirou forte e passou as mãos no rosto. Ficou alguns instantes imóvel e olhou para o relógio, 04:50. O sol daqui a pouco apareceria para mais um dia obvio, com pessoas obvias. Passou o cigarro entre os dedos, franziu a testa e balançou a cabeça em sinal de descontento. Para alguém que já sonhou em tocar as estrelas, não ter perspectivas para as próximas horas era algo no mínimo irônico. Passou os olhos pelo quarto sem direção e parou na janela. Já estava clareando quando abriu a gaveta e puxou um livro já surrado. Abriu com cuidado em uma página específica e ficou contemplando. Tirou de dentro um papel já amarelado e leu seu conteúdo. Seus olhos se encheram de lágrimas. Já nem lembrava mais o seu último sorriso. Se levantou rápido, como que fugindo dos pensamentos e guardou o livro. Era hora de ir trabalhar. Em frente ao trabalho ajeitou a camisa, respirou fundo e com um sorriso amarelo passou pela portaria e falou:

- Bom dia.

quinta-feira, 2 de abril de 2009

Presença

É preciso que a saudade desenhe tuas linhas perfeitas,teu perfil exato e que, apenas, levemente, o vento das horas ponha um frêmito em teus cabelos...É preciso que a tua ausência trescale sutilmente, no ar, a trevo machucado,as folhas de alecrim desde há muito guardadas não se sabe por quem nalgum móvel antigo...Mas é preciso, também, que seja como abrir uma janela e respirar-te, azul e luminosa, no ar.É preciso a saudade para eu sentir como sinto - em mim - a presença misteriosa da vida...Mas quando surges és tão outra e múltipla e imprevista que nunca te pareces com o teu retrato...E eu tenho de fechar meus olhos para ver-te.


Mario Quintana
UM DIA ACORDARÁS

Um dia acordarás num quarto novo sem saber como foste para lá e as vestes que acharás ao pé do leito de tão estranhas te farão pasmar,
a janela abrirás, devagarinho: fará nevoeiro e tu nada verás... Hás de tocar, a medo, a campainha e, silenciosa, a porta se abrirá.
E um ser, que nunca viste, em um sorriso triste, te abraçará com seu maior carinho e há de dizer-te para teu assombro:
- Não te assustes de mim, que sofro há tanto! Quero chorar - apenas - no teu ombro e devorar teus olhos meu amor...


Mario Quintana

Memorando.



E não há veneno de cobra que amargue a minha pele.
Nunca entortarão o piso suficientemente pra que eu dê um passo em falso.
Não cultivo confiança em gente de rosto pintado.
Não crio expectativas em gente que não me apetitece.
Não continuo amor naquilo que não merece.
Haverá de vir um cartaz em letras garrafais pra dizer
para venenosos tais a ruina que sofrerão por
desejar maldade em vão.
E com dizeres tal como esta que
muitos depositaram a crença de que de certa
forma sou ingênua.
Mas minha ingenuidade estampada é pra disfarçar
o olho vivo, meu coração e meus sentidos
que jamais me trairão.
E que fique por escrito para você que usará
a carapuça que agora lhe serve:
Fernecerá. Apodrecerá. Por conta do que é
pra ser será.
É a inveja que te enfeia.
Ambição que te azeda.
Ruindade gratuita que te fede.
Tramas que em tua pele explodem.
E para a autora que aqui escreve somente
coisas boas virão.
Posso não ser a mais santa das santas,
mas nunca em vida me arrastarei pelas
costas de ninguém. Nem desejei maldade em vão.